quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Walking on The Wild Side: As Drogas na América Sessentista/Setentista de Heron e Reed

   Sem muitas delongas, só de repente venci a preguiça e me peguei na vontade de postar de novo. E agora decidi mudar um pouco as coisas, to planejando umas postagens, musicais claro, mas falando em níveis menores, letras, arranjos e detalhes mais simples que sejam especiais, chamem minha atenção e de alguma forma possa encaixa-los em algo maior, no contexto social da época que foram lançados. Vamos ver no que isso vai dar... por hoje decidi começar com algo importante e bem politico: me propus a analisar a entrada das drogas pesadas nos Estados Unidos fazendo um recorte de cor através da letra de algumas músicas. Mas antes vou fazer uma introdução do contexto pra vocês sacarem a percepção que tenho dos fatos.

Gerações de Panteras.
   No final da década de 60/começo da década de 70 o Partido das Panteras Negras ganhava força como forma de resistência ao racismo legitimado pelo Estado americano que institucionalizava a descriminação que vinha desde a escravidão e esteve presente pelo apartheid, na guerra civil do país, na Klu Klux Klan e na classe média em geral. Tudo isso tinha culminado depois de muita luta na eclosão do movimento pelos direitos civis dos negros de liderança de Martin Luther King Jr e Malcom X e na criação do partido citado.

   As Panteras Negras que inicialmente patrulhava os guetos para proteger seus residentes da brutalidade dos ataques policias ganhou um caráter social muito grande, ações assistenciais eram realizadas, como a criação de escolas comunitárias, distribuição gratuita de alimentação, bem como a criação de centros médicos destinados a atender a comunidade negra. O Partido ensinava em escolas para jovens e também adultos o porquê de estarem naquela situação social e politica e isso por algum motivo ia contra o interesse do governo... vai saber né?

Racismo na América
   Nessa época o FBI buscou romper e “neutralizar” os Panteras Negras sob um programa secreto de contrainteligência chamado o COINTELPRO, de acordo com relatórios de um comitê do senado americano. O FBI usou informantes que levaram a diversas apreensões de armamentos dos Panteras em Chicago, Detroit, San Diego e Washington. No final de 1969, pelo menos 28 Panteras haviam sido mortos em confrontos armados com a polícia, e muito mais haviam sido presos por porte de armas.

Panteras protestando por direitos.
   Mais do que isso, para acabar completamente com as Panteras, a CIA e o FBI passaram, em associação com narcotraficantes da América latina, a despejar toneladas de cocaína e heroína nos bairros negros visando a desarticulação política, levando à dissolução do Partido.

   Sim, as drogas pesadas só passaram a ser traficadas em grandes quantidades nos E.U.A porque o governo americano considerou um dia uma organização de jovens militantes pretos "a maior ameaça à segurança interna do país" como declarou o presidente Hoover em 68. O que o governo não contava é que essas drogas iriam vazar dos guetos para a classe média americana fato que logo se consolidou.

   E é nesse contexto que quero mostrar essa relação com as drogas refletida na música.

   Primeiro por uma figura icônica dentro do rock, um santo as avessas cultuado por adolescentes hipsters, colecionadores de vinil e artistas plásticos: Lou Reed.

Lou Reed.
   Esse que vos escreve curte bastante a obra do cara, não que o considere um ídolo (e isso inclusive é debate para um próximo texto: quando eu acho justo considerar alguém um ídolo) mas teve uma grande importância para a música pop de sua época com seu inovadorismo.

   Aqui o lendário líder do Velvet Underground representa o autêntico adolescente da classe média americana da época, rebelando-se contra os valores de sua família tradicional judia (até sendo mandado para uma espécie de "cura gay") e consumindo heroína proveniente dos guetos como expliquei acima.

Velvet Underground & Nico, 1967.
   No primeiro álbum de sua banda, o clássico máximo da art rock, Velvet Underground & Nico, ele aborda o tema em duas músicas: "I'm Waiting for The Man" e "Heroin" que causaram polêmica por serem as primeiras músicas sobre esse tipo de droga cantadas na música pop (branca).

   Na primeira, ele relata sua espera na rua 125 de Manhattan, considerada a principal rua do bairro afro-americano do Harlem (sendo também chamada de Martin Luther King Jr. Boulevard) pelo traficante que lhe forneceria a droga detalhando todo processo e até mesmo a abordagem de um policial estranhando (ou fingindo estranhar) a presença de um garoto branco naquele lugar.


Trecho da letra original - I'm Waiting for The Man

I'm waiting for my man, 26 Dollars in my hand
Up to Lexington 125
Feel sick and dirty, more dead than alive
I'm waiting for my man

(Policeman)"Hey white boy, what you doing uptown?
Hey white boy, you chasing our women around ?"
(Lou) "Oh, pardon me, Sir, it's furthest from my mind
I'm just lookin' for a dear, dear friend of mine"
I'm waiting for my man

Tradução

Estou esperando pelo meu homem, 26 dolares em minha mão
Até a Lexington 125
Me sinto doente e sujo, mais morto do que vivo
Estou esperando pelo meu homem

(Policial) "Ei, garoto branco, o que voce está fazendo aqui?
Ei, garoto branco, voce veio caçar nossas mulheres?"
(Lou) "Oh, perdão, senhor, longe de mim isso
Só estou procurando por um amigo muito querido"
Estou esperando pelo meu homem

   É interessante notar nessa passagem como ele se entrega como sendo um viciado, ele cruza a cidade pra ir comprar sua droga e aguarda somente com o pensamento de concluir seu objetivo ali mesmo "se sentindo sujo, mais morto do que vivo". Seguindo a música, ele explicita sua dependência no trecho "I'm feeling good, I'm feeling oh so fine until tomorrow, but that's just some other time" (Estou me sentindo bem, estou me sentindo tão bem até amanhã, mas isso é outro momento) como quem precisa daquilo para estar feliz. A música mostra mesmo uma emoção ingenua em estar fazendo isso, da um clima cool pra tudo aquilo.

   "Heroin" é a ode máxima a heroína, a música de sete minutos tem um andamento crescente rumo a catarse que metaforicamente acaba representando o efeito da droga no organismo.


Trecho da letra original - Heroin

I don't know just where I'm going
But I'm gonna try for the kingdom, if I can
'Cause it makes me feel like I'm a man
When I put a spike into my vein
And I'll tell ya, things aren't quite the same
When I'm rushing on my run
And I feel just like Jesus' son
And I guess that I just don't know
And I guess that I just don't know

Tradução

Eu não sei para onde estou indo
Mas eu tentarei chegar até o reino se eu conseguir
Porque isso me faz me sentir como um homem
Quando eu injeto a agulha em minha veia
Eu te digo, as coisas não são mais as mesmas
Quando estou acelerando minha corrida
Eu me sinto como o filho de Jesus
E eu acredito que eu realmente não sei
E eu acredito que eu realmente não sei

   Nessa estrofe "se sentir como um homem" seria um paralelo a "estar vivo" "estar bem" e se sentir como o filho de Jesus como "ter poder", "ser abençoado" e no fim ele confessa talvez que no fundo ele não sabe o que está fazendo ou não sabe descrever a sensação e que não deve estar realmente assim e de qualquer forma ainda é bom "E eu acredito que eu realmente não sei" e tudo isso é fruto de tornar cult um sentimento suicida, de saber que aquilo no fundo está matando por dentro e que isso é bom visto toda a ilusão que se tem com a vida naquela sociedade:


Trecho da letra original - Heroin

I have made the big decision
I'm gonna try to nullify my life
'Cause when the blood begins to flow
When it shoots up the dropper's neck
When I'm closing in on death
And you can't help me now, you guys
...

I wish that I'd sail the darkened seas
On a great big clipper ship
Going from this land here to that
In a sailor's suit and cap
Away from the big city
Where a man can not be free
Of all of the evils of this town
And of himself, and those around
...

Heroin, be the death of me
Heroin, it's my wife and it's my life

Tradução

Eu tomei a grande decisão
Eu tentarei anular a minha vida
Porque quando começa a fluir
E sobre pelo pescoço do dopado
Quando estou mais perto da morte
E voces não podem me ajudar agora, rapazes
...

Eu desejo que tivesse navegado pelos mares sombrios
Em um grande e belo iate
Indo desta para outra ilha
Em uma roupa e chapéu de marinheiro
Para longe da cidade grande
Onde um homem não pode ser livre
De todos os demônios dessa cidade
E dele mesmo, e todos a sua volta
...

Heroina, seja minha morte
Heroina, é a minha esposa e é a minha vida



Lou sendo cool.

   É realmente muito complicado julgar alguém que fala sobre e supostamente sofreu de depressão, teve pensamentos suicidas e era um viciado mas eu acho igualmente complicado que, mesmo uma pessoa nesse estado, torne essa condição poética dessa maneira, sendo sua fuga do mundo sombria e ao mesmo tempo dando um status a isso, como quem está bem com aquela condição, é dificil para mim imaginar que alguém que esteja depressivo mostre felicidade pela sua possibilidade de morte, aquilo continua sendo ruim para quem sofre da doença mas se torna uma maneira de amenizar a dor, o mesmo com a droga. E sim, ele estava propenso aos males daquela sociedade, as pessoas querem uma fuga, elas precisam de uma, mas acho que para além disso Lou estava sendo o cara descolado e rebelde que desobedecia as regras.

   Eu gosto das duas músicas (e do album, ouçam) e vejo um fundo de realidade nelas porém também enxergo uma relação com as drogas que tem total influência dos privilégios daquele homem naquela sociedade, diferentemente do que está contido no que Gil Scott-Heron gravou quatro anos depois em seu disco seminal Pieces of a Man (1971).


Crianças almoçando em escola dos panteras.
   Heron era negro e pobre, cresceu no Bronx, um dos bairros mais violentos de Nova York. Apesar das condições nada favoráveis era dedicado e inteligente, estudando produção literária de autores brancos e seguindo os passos dos expoentes do chamado Harlem Renaissance (período de grande efervescência da literatura afro-americana). Em resumo, o cara era um poeta e percebia as mudanças e conflitos que aconteciam a sua volta.

   Começou sua carreira musical em 1970 com o LP Small Talk at 125th and Lenox. O álbum incluía canções agressivas contra os meios de comunicação corporativos manejados por brancos a superficialidade da televisão, o consumismo, e a ignorância da classe média dos Estados Unidos sobre os problemas sociais na época.

   Poesia e revolta. Sim, poesia revolta de um cara negro. Isso é o rap ou como ele deveria ser sempre (se não fossem esses mesmos meios de comunicação corporativos manejados por brancos que controlavam a industria cultural e o consumismo criticados pelo próprio Gil). Mas nos anos 70 não tinha rap, não tinha mesmo, mas tinha Gil Scott-Heron.

Pieces of a Man, 1971.

   O Pieces of a Man (Pedaços de um Homem), lançado um ano depois, (que álbum, amigxs, que álbum) tem umas das músicas mais importantes daquela época, The Revolution Will Not Be Televised (A Revolução não Será Televisionada) mas a que quero falar aqui sobre é Home is Where The Hatred Is, um soul obscuro e lindo com umas das letras mais pesadas que já contemplei.


Trecho da letra original - Home is Where The Hatred Is

A junkie walking through the twilight
I'm on my way home
I left three days ago, but no one seems to know I'm gone
Home is where the hatred is
Home is filled with pain and it,
Might not be such a bad idea if i never, never went home again
Stand as far away from me as you can and ask me why
Hang on to your rosary beads
Close your eyes to watch me die
You keep saying: "kick it, quit it, kick it, quit it"
God, but did you ever try
to turn your sick soul inside out?
...

Home is where I live inside my white powder dreams
Home was once an empty vacuum that's filled now with my silent screams
Home is where the needle marks
Try to heal my broken heart
and it might not be such a bad idea if I never, if I never went home again
...

Tradução

Um viciado andando pelo crepúsculo
Estou indo para casa
Eu a deixei três dias atrás, mas ninguém parecia notar que eu tinha ido
Lar é onde está o ódio
O lar está cheio de dor e ódio
Pode não ser uma ideia tão ruim nunca mais voltar para casa novamente
Permaneça o mais longe de mim que você pode
Pendure suas contas do rosário (Reze)
Feche seus olhos para me ver morrer
Você continua falando: "chute-a, feche-a, chute-a, feche-a"
Deus, mas voce já tentou alguma vez
jogar para fora sua alma doente?
...

Lar é onde eu vivo dentro dos meus sonhos de pó branco
Lar foi uma vez um vácuo completo que é preenchido agora com meus gritos silenciosos
Lar é onde as agulhas marcam
Tento curar meu coração partido
E pode não ser uma ideia tão ruim se eu nunca mais voltar para casa novamente


   A maneira como consegue ser franco expondo um problema individual e ainda aponta-lo como reflexo de um problema coletivo é grandioso e chocante. Na primeira estrofe ele já admite seu vicio e mostra conhecimento sobre a destruição que ele o provoca, no outro trecho ele aponta que lar é onde está o ódio porque é lá que encontra um ambiente hostil, lá ele sabe que não conseguirá parar de consumir cocaína e heroína, lá ele sabe que não conseguirá deixar de se consumir.

Gil Scott-Heron.

   Ele ainda tenta evitar os problemas que sua condição causa para os que estão a sua volta "permaneça o mais longe de mim que voce pode". O trecho "chute-a, feche-a"parece se referir a uma porta, como quem impede alguém de entrar mas também pode se referir aos demônios que atormentam e fazem questionar se "ja tentou alguma vez jogar para fora sua alma doente?".

   Ao mesmo tempo nessa música, e ai para mim ta a grande sacada, quando Scott-Heron se refere a casa ele também está falando de sua comunidade, que é uma comunidade semelhante aquela em que o senhor Reed comprava sua heroína, ele evidencia a destruição de seu bairro e também do começo da crise do movimento, em 71 os Panteras estavam sendo presos, mortos e... se afogando em vícios nos guetos. 


Poder para o povo!

   As três músicas citadas, I'm Waiting for The Man, Heroin e Home is Where The Hatred Is retratam o mesmo tema, em uma mesma época e mesma sociedade só que com a diferença primordial que estão sobre olhares de indivíduos que pertenceram a classes sociais, de cor, de condição econômica e logo visão de sua sociedade diferente. A cultura produzida nessas especificações de tempo e lugar são um excelente instrumento para entendermos o que acontecia ali mas como também se nota precisamos ter um olhar amplo para não nos limitarmos logo de cara com um ponto de vista sem fazermos um recorte. 

   O que para um foi uma fuga, mesmo que destruidora e ainda sim uma experiencia de juventude, uma aventura, para outro foi uma realidade mórbida consumada na tentativa de manter sua classe, seu grupo, na posição de margem que tinha sido colocada. O que sobra hoje é a arte para apreciar e a luta política que não morreu (e nem morrerá!) por uma realidade ocidental menos desigual, combatendo o tráfico, a pobreza e o racismo que é injetado em altas doses nas veias da nossa sociedade e a mantém com a alma doente, mais morta do que viva para alguns.



Abraços,
João Carlos Pinho

2 comentários:

  1. Há tempos que não me sinto preso a uma leitura tão boa e soberba! Meus parabéns bicho, gostei muito de ter adquirido esse conhecimento aqui, e vou procurar ouvir esse álbum do Gil, que muito me interessou.

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    1. Acho que além da minha vontade de escrever sobre aquilo que me é interessante e vejo como importante no mundo, essa interação com quem lê é o outro dos principais motivadores pra continuar escrevendo. Obrigado eu!

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